Pensamento abissal
O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns prenúncios no século XVIII, é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. A partir de então pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite variedade interna mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não-científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos).
Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo paradigma científico com os que o precedem. Está consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocéntrica do movimento dos planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande síntese da ordem cósmica de Newton e finalmente na consciência filosófica que lhe conferem Bacon e sobretudo Descartes. Esta preocupação em testemunhar uma ruptura fundante que possibilita uma e só uma forma de conhecimento verdadeiro está bem patente na atitude mental dos protagonistas, no seu espanto perante as próprias descobertas e a extrema e ao mesmo tempo serena arrogância com que se medem com os seus contemporâneos. Para citar apenas dois exemplos, Kepler escreve no seu livro sobre a Harmonia do Mundo