Para além do pensamento abissal - boaventura - resumo
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: O “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha.
O pensamento abissal moderno se destaca pela capacidade de produzir e radicalizar distinções. Por mais radicais que sejam essas distinções e por mais dramáticas que possam ser as consequências de estar em um ou outro de seus lados, elas pertencem a este lado da linha e se combinam para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas. O conhecimento e o direito modernos representam as manifestações mais cabais do pensamento abissal. Cada uma cria um subsistema de distinções visíveis e invisíveis de tal modo que as últimas se tornam o fundamento das primeiras. No campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciência, em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. Essas tensões entre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, vieram a se tornar altamente visíveis, mas todas elas, como defendo, têm lugar deste lado da linha. Sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma dessas modalidades. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo