Vida
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal (oriundo do abismo). Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o "deste lado da linha" e o "do outro lado da linha". A divisão é tal que "o outro lado da linha" desaparece como realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível3. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o "outro". A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. O universo "deste lado da linha" só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética.
Para dar um exemplo baseado em meu próprio trabalho, venho caracterizando a modernidade ocidental como um paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais4. Essa distinção visível fundamenta todos os conflitos modernos, tanto em termos de fatos substantivos como de procedimentos. Mas a essa distinção subjaz uma outra, invisível, na qual a anterior se funda: a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. De fato, a dicotomia "regulação/emancipação" se aplica apenas a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territórios coloniais, aos quais se aplica a dicotomia "apropriação/violência", por sua vez inconcebível de aplicar a este lado da linha. Contudo, a inaplicabilidade do paradigma "regulação/emancipação" aos territórios coloniais não comprometeu