Intertextualidade - Navio Negreiro
“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco”.
Os ombros suportam o mundo - Carlos Drummond de Andrade
Estávamos em pleno mar. Uma imensidão de água, sem começo, meio ou fim. Como uma criança, eu brincava com o líquido que escorria por meu corpo, mergulhando repetidas vezes com a mesma alegria de um pássaro que encontra seu ninho. No salto para um mergulho, caí na realidade. A boca seca e o lençol encharcado de suor. Sedento, levanto a sua procura. Ao abrir a torneira, silêncio. Minha garganta chora e clama por aquilo que me renova.
Abri a primeira, a segunda, a terceira torneira. O ruído agonizante dos abridores chiando soa como uma orquestra desafinada, a qual não quero dar ouvidos. Não tem água em lugar algum. A cidade tornou-se um deserto. Esse cenário dantesco parece ter tomado conta de São Paulo, instalando o caos infernal que congela o nosso ser.
Ainda és terra da garoa? Nesses turbulentos dias, onde as sombras nos cercaram e nos transformaram em nada, em meros corpos vagando em um oceano de incertezas, tive minhas dúvidas. Quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João, meu coração não bate mais como costumava bater. Hoje, só há vazio.
Saio pelas ruas tentando encontrar respostas e vejo que não sou o único a navegar nesse navio do qual não posso escapar. Todos nós estamos desesperados. Temos sede. Temos de limpar nossos lares. Temos de nos banhar. Mas nada além daquele chiado vazio que insiste em nos perturbar. Ó orquestra irônica e estridente, porque insiste em nos amedrontar? E ri-se a orquestra.
Meu Deus...Meu Deus...por que conosco? Eu pergunto à você, Meu Deus do céu, por que tamanha judiação? Que mal causamos? Seria nossa 8falta de generosidade? Seria nosso nervosismo no trânsito? Seria nosso desperdício? Logo percebo que não.