Democracia Domesticada
A concepção corrente de "democracia", tanto no senso comum como no ambiente acadêmico, está cindida em dois. De um lado, a idéia de "governo do povo", que corresponde a seu significado etimológico; é a herança dos gregos, que nos deram a palavra e parte do imaginário associado à democracia. De outro, a democracia está ligada ao processo eleitoral como forma de escolha dos governantes. O principal traço comum aos regimes que são considerados democráticos é a realização de eleições periódicas e livres para o governo – "livres" significando, em geral, a ausência de violência física e de restrições legais à apresentação de candidaturas. Outras interferências sobre o pleito, como o uso do poder econômico e o partidarismo da mídia, podem ser vistas como prejudiciais, mas não a ponto de deslegitimar o processo.
O problema é que as duas faces do conceito de democracia se mostram, em alguma medida, incompatíveis entre si. Em primeiro lugar, a própria instituição da eleição era vista, da Antiguidade ao século XVIII, como oposta ao ordenamento democrático, que pressupunha a igualdade entre os cidadãos e, portanto, devia utilizar o sorteio como forma de escolha dos governantes (Manin, 1997; Miguel, 2000). Mais importante, porém, é o fato de que, em nenhum dos regimes hoje considerados democráticos, o povo realmente governa. As decisões políticas são tomadas por uma minoria, via de regra mais rica e mais instruída do que os cidadãos comuns, e com forte tendência à hereditariedade.
Tudo isso está longe da concepção normativa que a palavra "democracia" continua a carregar: uma forma de organização política baseada na igualdade potencial de influência de todos os cidadãos, que concede às pessoas comuns a capacidade de decidir coletivamente seu destino. Está longe, também, da experiência clássica. Sobre a Atenas dos séculos V e IV a.C., é possível dizer que, em alguma medida, o povo