A palavra compartida
Gustavo de Castro**
Dois diferentes escritores, um produtivo e outro atormentado, habitam chalés em vertentes opostas do mesmo vale, O escritor atormentado observa com uma luneta o produtivo trabalhar e encher páginas inteiras com palavras que parecem jorrar de uma fonte inesgotável. Logo avoluma-se sobre a escrivaninha uma pilha de papel, que redundará no seu mais novo romance. O escritor atormentado sente inveja e admiração do autor produtivo, considera-o um hábil artesão, capaz de confeccionar uma série de textos de fácil compreensão, e de se exprimir com tão metódica segurança que qualquer um pode entendê-lo.
O escritor produtivo, também com uma luneta, observa o atormentado se acomodar na sua mesa de trabalho. Vê-lo arrumar e rearrumar o papel, escolher o lápis e a caneta, ficar parado, quase estático, como se esperasse uma voz qualquer advinda do fundo branco da folha. O atormentado rói as unhas, rabisca algo e arranca a folha, levanta-se e vai até a cozinha preparar um café, depois um chá preto e, em seguida, um chá de camomila. Através da luneta, o produtivo o vê pôr algumas linhas no papel, depois riscar tudo e reescrevê-las, para em seguida rasgar a folha e começar tudo de novo. Com o atormentado, as palavras parecem se deter, vacilar, avançar com cautela e rigor; assemelham-se a fragmentos que traçam perfis irretocáveis, evocam cenários perfeitos e acontecimentos capazes de conter uma multiplicidade sempre crescente de significados. O escritor produtivo também sente inveja e admiração pelo atormentado, sabe que, se comparado a ele, o seu trabalho é limitado e superficial.
Esses dois diferentes estilos de narradores, criados por Italo Calvino no romance Se um viajante numa noite de inverno (1979), podem ilustrar, por um lado, a produtividade jornalística tão comum aos homens de imprensa e, por outro, a busca estética e o rigor quase ritualístico da literatura. Um narrador que tem boa técnica e elasticidade de idéias