A abóboda
Alexandre
Herculano
Agrupamento de Escolas André Soares
CAPÍTULO I – O cego
O dia 6 de Janeiro do ano da Redenção 1401 tinha amanhecido puro e sem nuvens: os campos, cobertos aqui de relva, acolá de searas, que cresciam a olhos vistos com o calor benéfico do sol, verdejavam ao longe, ricos de futuro para o pegureiro e para o lavrador. Era um destes formosíssimos dias de inverno, mais gratos que os do estio, porque são de esperança, e a esperança vale mais do que a realidade; destes dias, que Deus só concedeu aos países do ocidente, em que os raios do sol, que começa a subir na eclítica, estirando-se vívidos e trémulos por cima da terra, enegrecida pela humidade, errando por entre os troncos pardos dos arvoredos, despidos pelas geadas, se assemelham a um bando de crianças no primeiro viço da vida a folgar e a rolar-se por cima da campa, sobre a qual há muito sussurrou o último ai da saudade, e que invadiram os musgos e abrolhos do esquecimento. Era um destes dias antipáticos aos poetas ossiânico-regelonevoentos, que querem fazer-nos aceitar como coisa mui poética esses gelos do norte, esses brilhantes caramelos dos topos das montanhas, sem se lembrarem de que
Do sol do meio-dia aos raios vividos,
Parvos!—se lhes derretem: a brancura
Perdem co'a nitidez, e se convertem
De lúcidos cristais em agua chilre;
Em: HERCULANO, Alexandre – Lendas e narrativas
A abóboda ~ 2 ~
Agrupamento de Escolas André Soares
destes dias, enfim, em que a natureza sorri como a furto, rasgando o denso véu da estação das tempestades.
No adro do mosteiro de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado da Batalha, fervia o povo entrando para a nova igreja, que de mui pouco tempo servia para as solenidades religiosas. Os frades dominicanos, a quem el-rei D. João I tinha doado esse magnífico mosteiro, cantavam a missa do dia debaixo daquelas altas abóbadas, onde repercutiam os sons do órgão, e os ecos das vozes do celebrante, que entoava os kyries. Mas não era por ouvir a missa