Satíricon
amor e amizade no Satyricon de Petrónio
I O contraste: alguns fulgores de genuína paixão em Apuleio Se a discussão do tema proposto incidisse não sobre o Satyricon de Petrónio, mas sobre uma obra produzida cerca de um século mais tarde – O burro de ouro de Apuleio –, os resultados da análise poderiam ser bastante diferentes daqueles que vão agora ser apresentados. Com efeito, embora os dez primeiros livros de O burro de ouro estejam pro‑ fundamente marcados pelos efeitos perniciosos da Fortuna caeca e, por esse motivo, contribuam para desenhar um universo de insegurança e engano, traduzido muitas vezes no oportunismo das relações huma‑ nas e numa misoginia sempre latente, certo é também que na obra se encontram exemplos impressionantes de dedicação verdadeira e de entrega incondicional. Isso mesmo acontece na longa digressão que ocupa o centro da obra e costuma ser conhecida por Conto de Amor e Psique. De facto, Psique começa por ceder a uma imprudente curiositas, que embora lhe permita descobrir, extasiada, o aspecto divino do seu fugidio companheiro, irá levá‑la também a perder nesse mesmo ins‑ tante (e se bem que de forma não inteiramente justa) o convívio com o ente amado. Ainda assim e num processo de maturação progres‑
AMOR E AMIZADE NO SATYRICON DE PETRÓNIO
Delfim Leão
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siva que a opõe aos melindres exacerbados e extemporâneos de uma Vénus despeitada, Psique irá lutar pela união com o Amor, ao longo de um trajecto marcado por inúmeras dificuldades, às quais ela vai respondendo com um generoso espírito de dedicação. Além do reen‑ contro com a pessoa querida, Psique será igualmente agraciada com a recompensa da apoteose final; a imortalidade que lhe é oferecida por Júpiter favorece, no plano do mito, a aceitação por Vénus da relação entre o seu filho divino e Psique, uma vez que essa ligação deixa de ser um matrimónio desigual. Do ponto de vista simbólico, porém, a apoteose retrata a ascensão da