Ordem versus Progresso
ANARQUIA ORIGINAL:
A contraparte dialética da intencionalidade do projeto colonial é o caráter anárquico; selvagem e socialmente irresponsável da expansão dos núcleos brasileiros. Atuando sobre uma realidade diferente, que obrigava a buscar soluções próprias ajustadas à sua natureza e agindo longe das vontades oficiais, a ação do colono exerceu-se quase sempre improvisadamente e ao sabor das circunstâncias. Sendo imprevisível, ela crescia desgarrada até que, por reiteração, constituísse uma pauta de ação suscetível de ser copiada e regulada. Em muitos campos a regra jamais vingou. Um bom exemplo é a fornicação com as índias na gestação prodigiosa de mestiços fora de qualquer regra canonizável que se teve de admitir e generalizar. Outro exemplo nos dá a bandeira, como operação guerreira de preia de escravos índios para usar e para vender. O bandeirante, agente de uma violência privada, passa a ser agente da Coroa. É ele quem viabiliza, por sua ação e com seus meios, a vida econômica nas regiões pobres e a apropriação física do Brasil. Embora a ilusão oficial fosse dar aos índios o nobre destino copiosamente alegado nos documentos oficiais, a metrópole jamais opôs qualquer obstáculo sério ao cativeiro. Mais tarde, quando os bandeirantes tropeçam com ouro e, depois, com diamantes nos ermos onde andavam, é que vem a Coroa legalizar a posse das catas, impondo formas de exação cada vez mais escorchantes. No caso dos diamantes tal como ocorrera antes com o tabaco e o sal - decreta o monopólio real para que ninguém mais lucrasse com a riqueza nova, convertendo os garimpeiros em contrabandistas condenados pelo furor fiscal ao exercício clandestino de suas atividades. Nós somos resultantes do embate daquele racionalismo burocrático, que queria executar na terra nova um projeto oficial, com esse espontaneísmo que a ia formando ao deus-dará, debaixo do poderio e das limitações da ecologia tropical e do despotismo do mercado mundial.