As inúmeras reflexões suscitadas pelo "Ensaio sobre a Dádiva" só recentemente passaram a reconhecer a importância da contribuição de Marcel Mauss para o estudo das formas de circulação de bens e serviços nas sociedades contemporâneas. Embora Mauss tenha sugerido que os princípios da economia do dom "funcionam ainda nas nossas sociedades, de maneira constante e por assim dizer subjacente" (Mauss, 1974 [1923-24]:42), deu-se mais atenção ao segundo adjetivo que ao primeiro. Como resultado, prevaleceu quase sempre a noção de uma descontinuidade radical entre duas modalidades de relação: a troca de dons, que vincula sujeitos enquanto sujeitos por meio de objetos; e a troca mercantil, na qual só seria relevante a equivalência entre os objetos trocados (cf. Gregory, 1982). Desse modo, mesmo quando se admite que os princípios do dom não foram totalmente suplantados pela dinâmica do mercado nas sociedades contemporâneas, sua presença é comumente reconhecida apenas no universo das relações privadas ou, quando muito, em algumas instâncias que parecem resistir a uma completa submissão à lógica mercantil, como o trabalho voluntário, a filantropia e a comercialização de obras de arte. O propósito deste artigo é explorar a intuição maussiana sobre a coexistência desses dois princípios aparentemente antitéticos de organização das relações sociais, desenvolvendo a hipótese de que a lógica do dom não se limita apenas a regiões intersticiais da sociedade contemporânea, mas pode ser reencontrada no próprio coração do mercado - talvez não nos "jogos abstratos do dinheiro", mas certamente nas operações que fazem parte da vida econômica cotidiana. A reflexão se baseia em pesquisa etnográfica sobre conflitos decorrentes de relações de consumo, sobretudo aqueles cuja solução é buscada junto a instituições estatais de defesa do consumidor. O trabalho de campo, realizado em Curitiba (PR) ao longo dos últimos quatro anos, envolveu entre outros procedimentos a observação da rotina