O ENAMORAMENTO Quando nos enamoramos, por muito tempo continuamos a dizer a nos mesmos que não o estamos. Passado o momento em que se revelou o acontecimento extraordinário, retornamos à vida quotidiana e pensamos que tudo foi passageiro. Mas, para nosso espanto, esse momento nos volta à mente, nos cria um desejo, uma ânsia que só se aplacam quando revemos a pessoa amada ou ouvimos a sua voz. Mas tudo volta logo a desaparecer, e dizemos a nós mesmos que foi apenas uma exaltação que não tem importância alguma. Talvez haja um pouco de verdade nisso, pois no começo não se distingue bem se é realmente um enamoramento ou se tudo não passar de uma reestruturação radical do mundo social em que vivemos, e que faz parte orgânica de todos nós. Mas se esse desejo reaparece, e torna a reaparecer e se impõe, então estamos verdadeiramente enamorados. O enamoramento é um processo no qual a outra pessoa, aquela que encontramos e nos correspondeu, se nos impõe como o objeto pleno do desejo. Esse acontecimento nos impõe a reorganização de tudo, e esse fato obriga-nos a repensar tudo, especialmente o nosso passado. Na realidade, não é um repensar, mas um refazer. É, com efeito, um renascimento. O estado nascente (do enamoramento ou dos movimentos sociais) tem a extraordinária propriedade de refazer o passado. Na vida quotidiana, não podemos refazer o passado. Nosso passado existe com suas desilusões, suas recordações, suas amarguras. (...) As pessoas enamoradas (e muitas vezes ambas conjuntamente) reveem o passado e se dão conta de que o que aconteceu foi assim porque, naquele momento, fizeram opções, que elas quiseram e agora não querem mais. O passado não é negado nem oculto, é privado de valor. É verdade que amei e odiei meu marido, mas não o odeio mais; enganei-me, mas posso mudar. Então o passado se configura como pré-história, e a verdadeira história começa agora. Desse modo terminam o ressentimento, o rancor e o desejo de vingança. Não se pode odiar o que não tem mais