Sobre a língua
Avô em playground Luis Fernando Veríssimo.
Uma das eventuais missões de avô, Zuenir, é acompanhar a neta a playgrounds e ficar de olho enquanto ela se mistura com outras crianças, sobe e desce de brinquedos, corre, cai, chora, se levanta – enfim, interage com o mundo e com os outros. Pode ser uma experiência desconcertante, para o avô. Um playground cheio de crianças é um microcosmo em que todos os impulsos e calhordices da humanidade são reproduzidos em estado puro, sem dissimulação. Alianças são feitas e desfeitas em minutos, os mais fortes ou mais ativos impõem sua vontade, e, como no mundo dos adultos, os piores conflitos parecem sempre passar pela questão da propriedade. Desconfio que John Locke desenvolveu sua teoria sobre o instinto da propriedade acompanhando uma disputa sobre baldes e pazinhas em algum playground inglês do século 17.
Corta o coração de um avô ver o primeiro encontro da neta com a realidade de que o que é do outro é do outro, e só será compartilhado por um raro ato de altruísmo. Isto vale tanto para baldes e pazinhas quanto para bolas, bonecos, lugares na fila do escorregador e latifúndios improdutivos.
Avô em playground precisa ter, antes de mais nada, autocontrole. Deve resistir à tentação de socorrer a neta cada vez que ela cai, abraçá-la e tentar convencê-la a não sair mais do colo do vô, que é o lugar mais seguro da Terra. Também deve resistir à tentação de dar um sutil empurrão no garoto que insiste em não desocupar o balanço, ou interferir quando a menina maior não deixa a sua neta colaborar nos seus bolinhos de areia. Inclusive indo lá e, disfarçadamente, pisando nos bolinhos. O correto, claro, é deixar a neta descobrir sozinha como se defender e como se impor. Mas aí entra outra consideração: sua neta só aprenderá a sobreviver à truculência e à prepotência dos outros se também se tornar um pouco truculenta e