Ser e dever
No começo de sua “Teoria pura do direito”, na seção denominada “Direito e natureza”, Kelsen traça uma distinção entre ser e dever-ser, ou, para falar em termos menos abstratos, entre as coisas como são e as coisas como devem ser, que desempenha dois papéis distintos, mas igualmente cruciais, na sua concepção do Direito:
a) Em primeiro lugar, a distinção serve para diferenciar entre duas modalidades de estudo do direito: do direito como ele é e do direito como ele deve ser;
b) Em segundo lugar, a distinção serve para diferenciar entre o reino dos fatos, relacionado ao ser, e o reino das normas, relacionado ao dever-ser.
A primeira distinção é de natureza epistemológica. Kelsen distingue, na verdade, entre descrição e avaliação. O que Kelsen recomenda é um estudo do direito como ele é no sentido de um estudo descritivo, de um exame que esclareça o que o direito vigente é e estabelece, sem confundir-se com nem ser influenciado por avaliações a respeito do caráter moralmente correto ou incorreto e politicamente útil ou nocivo dos conteúdos particulares postos pelas normas jurídicas. Kelsen propõe, portanto, um estudo não-avaliativo do direito, um estudo que possa informar, de modo objetivo e neutro, qual o direito vigente e o que ele diz.
A segunda distinção é de natureza ontológica. Kelsen distingue, agora, entre fatos e normas. Tendo um conceito mais ou menos ingênuo de “fato”, como, digamos, aquilo que ocorre no mundo, Kelsen se dedica mais ao esclarecimento da sua noção de norma, mediante uma nova distinção, dessa vez entre dever-ser subjetivo e dever-ser objetivo. Segundo Kelsen, o dever-ser é sempre produto de uma vontade. Em última instância, Kelsen identifica aquilo que deve ser com aquilo que alguém quer que seja, mais especificamente, com aquilo que alguém quer que outro alguém faça. Se alguém quer que certa pessoa faça certa coisa, mas essa pessoa não tem nenhuma obrigação de fazer o que a