Ilegalidade e delinqüência
ILEGALIDADE E DELINQÜÊNCIA
No que se refere à lei, a detenção pode ser privação de liberdade. O encarce ramento que a realiza sempre comportou um projeto técnico. A passagem dos suplícios, com seus rituais de ostentação, com sua arte misturada à cerimônia do sofrimento, a penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guar dadas pelo segredo das repartições, não é passagem a uma penalidade indife renciada, abstrata e confusa; é a passagem de uma arte de punir a outra, não menos científica que ela. Mutação técnica. Dessa passagem, um sintoma e um resumo: a substituição, em 1837, da cadeia dos forçados pelo carro celular.
A cadeia, tradição que remontava à época das galeras, ainda subsistia sob a monarquia de julho. A importância que parece ter adquirido como espetáculo no começo do século XIX talvez esteja ligada ao fato de que ela juntava numa só manifestação dois modos de castigo: o caminho para a detenção se desenro lava como um cerimonial de suplício. Os relatos da
“última cadeia” — na verdade, as que cruzaram a França em todos os sentidos no verão de
1836 — e de seus escândalos permitem encontrar esse funcionamento, bem estranho às regras da “ciência penitenciária”. À saída, um ritual de cadafalso; é a selagem das coleiras de ferro e das cadeias, no pátio de Bicêtre: o forçado fica com a nuca virada sobre a bigorna, como uma estaca de ferro; mas desta vez a arte do carrasco, ao martelar, é não esmagar a cabeça — habilidade invertida que sabe não dar a morte.
O grande pátio de Bicétre exibe os instrumentos do suplício: várias fileiras de cadeias com suas gargantilhas. Os artoupans (chefes dos guardas), ferreiros temporários, dispõem a bigorna e o martelo. À grade do caminho da ronda estáo coladas todas aquelas cabeças com uma expressão indiferente ou atrevida, e que o operador vai rebitar. Mais alto, em todos os andares da prisâo, vêem-se pernas e braços pendurados pelas grades dos cubículos, parecendo um bazar de