Andresen, Sophia de Mello Breyner Andresen, “História da gata Borralheira” in Histórias da Terra e do mar. I Como uma rapariga descalça a noite caminhava leve e lenta sobre a relva do jardim. Era uma jovem noite de Junho, a primeira noite de Junho. E debruçada sobre o tanque redondo ela mirava extasiadamente o reflexo do seu rosto. Do jardim via-se a casa, uma casa grande cor-de-rosa e antiga que, toda iluminada nessa noite de festa, espalhava no jardim luzes, brilhos, risos, música e vozes. A luz recortava o buxo dos canteiros e a música misturava-se cora o baloiçar das árvores. Pelas janelas abertas avistavam-se pares dançando e vestidos claros de raparigas, vestidos que flutuavam entre os passos e os gestos. Vultos de namorados passavam entre as cortinas e vinham apoiar-se no peitoril das janelas, inclinados sobre a noite. Às vezes um riso mais agudo cortava, como um pequeno punhal, a água lisa dos tanques. Vistas do jardim essas coisas pareciam feéricas e irreais. Delas subia, perante a alegria serena da noite, urna alegria rápida e agitada, desgarrada e passageira, um pouco triste e cruel. Lúcia tinha dezoito anos e era este o seu primeiro baile. Tinha vindo com a tia que era sua madrinha. Seguida, por Lúcia, a tia atravessou a grande entrada iluminada e, com os brincos a tilintar, avançou para os donos da casa que estavam de pé à porta da primeira sala. Falaram-se e beijaram-se e, enquanto se falavam e beijavam, Lúcia, um pouco entontecida por tantas caras desconhecidas e tantos vestidos de tantas cores e pela profusão de vozes e flores e luzes e perfumes, tudo para ela confusamente próximo demais e acumulado demais, só pôde ver que o vestido da dona da casa era azul e que a cara do dono da casa era encarnada amável como uma maçã polida. — Esta é a minha sobrinha Lúcia. É filha do meu primo Pedro — disse a tia. A dona da casa sorriu com um ar um pouco ausente, beijou Lúcia e respondeu: - Conheci muito bem o seu Pai. Mas há muito tempo que não o vejo. - Ah, é