Crónica de antónio lobo antunes
O vivo e puro amor de que sou feito
"Nem sequer aprendi a tomar conta de mim. Desenho vogais e consoantes e demoro séculos a achar as letras certas. O que será morrer, morrer mesmo? O meu primo já sabe mas não me vai contar. Um dia aprenderei sozinho. Vi o meu pai, apenas perfil, na cama do hospital. Apenas perfil, garanto. O meu pai"
O meu primo morreu com uma coragem exemplar. Fui à igreja numa tarde de muito calor e muito sol. Bebi uma água num cafezito e desci para a capela. Algumas árvores grandes. Outro defunto na capela ao lado. Eu não pensava em nada, nem sequer nele. Vazio apenas, como antes de começar um livro. Desce-se uma dúzia de degraus e encontram-se caixões, algumas flores, algumas pessoas sentadas, outras a fumarem à entrada. A mim tudo me pareceu esquisito. Caras conhecidas, caras desconhecidas. Até que ponto conheço as caras conhecidas? Desconversei um bocado, com a boca a falar sozinha porque eu em silêncio. Cada vez emito menos sons, se calhar aproximo-me do fim das pilhas: qualquer dia imobilizo-me a meio de um passo, a meio de um gesto, numa rua qualquer ou numa passadeira de peões, com os automóveis a buzinarem. Suponho que alguém há-de sair de um dos automóveis e colocar-me na berma do passeio. Então fico para ali, igual à mobília quebrada que a camioneta da Câmara levará à noite. Para onde? Sujeitos de luvas a entornarem-me no lixo.
O meu primo dizia que gostava de mim. Passei anos a escrever no atelier dele. Ia numa frase e ele a fazer-me festas no pescoço
- É bom tê-lo aqui sem que eu entendesse o motivo dado que não tinha espaço para conversas e levava o tempo às voltas com os papéis. Invernos frios como o caneco, de manta nos joelhos. Punha-me um aquecedor perto, que tresandava a gás. E um candeeiro que, volta não volta, pifava. Em certas ocasiões, de tão cansado, adormecia sobre as páginas. Quase a dormir as palavras saíam melhor. O fogão, o candeeiro e um contentor a jeito, a fim de rasgar