António lobo antunes
(Visão, 18 a 24 Março 2004, p. 15)
Um terrível, desesperado e feliz silêncio
No princípio de Março acabo o meu romance, começado em Junho de 2002. Devia estar contente: é melhor, sozinho, que tudo o que publiquei até agora, somado e multiplicado por dez. Durante vinte meses gastei nele praticamente as vinte e quatro horas de cada dia desses meses, escrevi-o desencantado, com vontade constante de destruir o que ia fazendo, sem saber bem para onde dirigis, limitando-me a seguir a minha mão, num estado próximo dos sonhos, e ao começar a revê-lo, surpreendido, pareceu-me composto.
Não composto, ditado por um anjo, por uma entidade misteriosa que me guiava a esferográfica. Foram vinte meses num estado de sonambulismo estranho, descobrindo-lhe, durante as correcções, uma coerência interna que me havia escapado, uma energia subterrânea, vulcânica, de que me não julgava capaz. Devia estar contente: não estou. Em primeiro lugar porque nem um cisco de vaidade existe em mim. Sou demasiado consciente da minha finitude para isso, e muitas vezes recordo o que o advogado Howard Hughes, o milionário americano, respondeu ao jornalista, que logo após a morte do seu cliente, lhe perguntou quanto é que Hughes tinha deixado. O que o advogado disse foi
- Deixou tudo
E eu deixarei apenas, além de tudo, uns livros e, espero, alguma saudade nas poucas pessoas que me conheceram e fizeram o favor de gostar de mim. Nada mais. Em regra chegamos demasiado tarde a algum conhecimento da vida que de pouco nos serve. Uns livros. Este, que me devia deixar contente e não deixa. O que sinto agora, a uma ou duas semanas de acabá-lo, é um enorme enjoo físico do acto de escrever. Até Junho ou Julho não começarei outro romance porque me sinto exausto. E no entanto
(e é por isso que não estou contente)
Aborrece-me ter, com sorte, talvez tempo para mais dois ou três livros antes que as águas se fechem definitivamente sobre a minha cabeça: eis a verdade.