Álvaro de Campos
Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verde.
Outrora.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...
Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tique taque estalado das máquinas de escrever.
(O.P. p.389)
O sujeito poético de Álvaro de Campos do poema “Datilografia” está rodeado dos objetos que lhe caracterizam espaço e ofício da vida adulta e consciente. O sujeito está apartado, distante do mundo externo ao seu escritório, profundamente mergulhado em seus afazeres de engenheiro. No entanto, essa vida de ocupação adulta e consciente não lhe basta para companhia, ressalta sua solidão, o sujeito poético expressa um estado de angústia íntima que produziu as melancólicas reflexões sobre o paradisíaco espaço-tempo da infância.
Pelo ruído da máquina de escrever, o sujeito foi levado a pensar sobre dois planos