O povo do Rio de Janeiro: bestializados ou bilontras?
O povo do Rio de Janeiro: bestializados ou bilontras?*
José Murilo de Carvalho **
Resumo - O trabalho condensa resultados de investigações do autor sobre a participação política da população fluminense nos primeiros anos da República e sugere uma explicação para o fenômeno. Parte-se do contraste entre a total ausência de participação popular dos mecanismos formais do sistema político, particularmente das eleições, e a intensa participação social, especialmente por meio das organizações de assistência mútua. De um lado, a ausência do povo; de outro, a abundância de povo. Ressalta-se também como característica do Rio de Janeiro a atitude pragmática, cínica, carnavalizada, perante o poder. Haveria um pacto não-escrito, informal, entre o cidadão e o Estado, que passava à margem das formalidades do sistema político. O que parecia apatia, alienação, “bestialização”, era, na verdade, pragmatismo, sabedoria, astúcia. A explicação é buscada nas especificidades culturais ibéricas e nas características sociais da cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chave:
Palavras-chave participação popular; sistema político; Rio de Janeiro.
O povo assistiu bestializado à Proclamação da República, segundo Aristides Lobo; não havia povo no Brasil, segundo observadores estrangeiros, inclusive os bem informados como L. Couty; o povo fluminense não existia, afirmava Raul Pompéia.
Visão preconceituosa de membros da elite, progressistas embora? Etnocentria de franceses? Mais do que isto. A liderança radical do movimento operário também não parava de se queixar da apatia dos trabalhadores, de sua falta de espírito de luta, de sua tendência para a carnavalização das demonstrações operári-
as, especialmente nas celebrações de 1º de maio. Quando se tratava do próprio carnaval, os anarquistas não hesitavam em usar a expressão forte de Aristides Lobo: a festa revelava, do lado dos assistentes, ignorantes e imbecis;