A arte de saber ler
Rubem Alves
Ela me olhou e disse: "Encontrei um lindo poema de Fernando Pessoa". Fiquei contente, porque gosto muito de Fernando Pessoa. Aí ela disse o primeiro verso. Fiquei mais contente ainda, porque era um poema que eu conhecia. Ato contínuo, ela abriu o livro e começou a ler. Epa! Senti-me mal. As palavras estavam certas. Mas ela tropeçava, parava onde não devia, não tinha ritmo nem música. Não, aquilo não era Fernando Pessoa, embora as palavras fossem suas. Senti o mesmo que já sentira em audições de alunos principiantes que, via de regra, são um sofrimento para os que ouvem, o maior desejo sendo que a música chegue ao fim e que a aflição termine. Percebi, então, que a arte de ler é exatamente igual à arte de tocar piano ou qualquer outro instrumento. Como é que se aprende a gostar de piano? O gostar começa pelo ouvir. É preciso ouvir o piano bem tocado. Há dois tipos de pianistas. Alguns, raros, como Nelson Freire, já nascem com o piano dentro deles. Eles e o piano são uma coisa só. O piano é uma extensão dos seus corpos. Outros, aos quais dou o nome de "pianeiros", são como eu, que me esforcei sem sucesso para ser pianista (consolo-me pensando que o mesmo aconteceu com Friedrich Nietzsche. Atreveu-se até mesmo a enviar algumas de suas composições ao famoso pianista Hans von Büllow, que as devolveu com o conselho de que ele deveria se dedicar à filosofia). Diferentemente dos pianistas, que nascem com o piano dentro do corpo, os "pianeiros" têm o piano do lado de fora. Esforçam-se por pôr o piano do lado de dentro, mas é inútil. As notas se aprendem, mas isso não é o bastante. Os dedos esbarram, erram, tropeçam, e aquilo que deveria ser uma experiência de prazer se transforma numa experiência de sofrimento não só para quem ouve mas também para quem toca. Um pianista, quando toca, não pensa nas notas. A partitura já está dentro dele. Ele se encontra num estado de "possessão". Nem pensa na técnica. A técnica ficou para trás, é um