A alma encantadora das ruas
Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS João do Rio
This is a sensible book. This is a book to improve your mind. I do not tell you all I know, because I do not want to swamp you with knowledge... Jerome K. Jerome
A
João Ribeiro Profunda admiração JOÃO DO RIO
A RUA
Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua. A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer: Je suís la rue, femme êternellement verte,
Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis Que ce pénible monde est monde, je la suis... A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: “Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia”. E Domingos Vieira, citando as Ordenações: “Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas”. A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais