Soneto de camões (tanto de meu estado me acho incerto)
O soneto promove uma intersecção de resíduos medievais, procedimentos clássicos renascentistas e antecipações barrocas. O tratamento distanciado da figura feminina, tratada, como nas cantigas de amor trovadorescas, respeitosamente por "Senhora" e a intermediação dos sentimentos, que provoca apenas a sua contemplação, "só porque vos vi", sugerem, na construção dessa imagem espiritualizada da mulher, a atitude medieval.
Leia o poema:
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
A adoção da métrica decassilábica e da forma fixa do soneto; a adesão aos postulados da medida nova; a seleção do léxico, sóbrio, claro, elegante; enfim, a estrutura formal remete à atitude clássica. Renascentista é também a figura masculina, humanizada, terrena, que sente, chora, ri, desvaria, acerta e tenta raciocinar sobre suas desencontradas reações. A construção antitética e a intensidade dos sentimentos, esta última refletida nas hipérboles líricas, são prenúncios da atitude maneirista e barroquizante. A inquietação do poeta manifesta-se por meio da construção antitética e pradoxal, e a intensidade de seus sentimentos, por meio de hipérboles líricas. O caráter dramático da composição resulta da constente tensão entre aparência e essência, construída pelo sistema de oposição do texto:
ardor x frio o mundo todo abarco x nada aperto alma x vista fogo x rio