Portuguêa
Eu não sei bem para quem escrevo, só sei que preciso. Tenho 524 anos de história acumulados pela minha casa. Fotografias, cartas, roupas. As memórias parecem inofensivas mas, de vez em quando, elas decidem me tirar o sono. Quando fecho os olhos, eu vejo rostos de pessoas que amei. Pessoas que se foram. Algumas mais recentemente do que outras. É de se pensar que alguém que já viveu mais de cinco séculos já teria se acostumado com a perda. Eu mesma pensava assim até algumas semanas atrás. Deixe-me explicar melhor. Meu nome é Luna Farahani e eu tenho 524 anos. Nasci em 1490, em Portugal, em plena Guerra da Reconquista. Meus avós eram árabes vindos para a Península Ibérica durante a expansão muçulmana. Logo após chegarem, foram obrigados a se tornarem cristãos. Minha mãe também nasceu em Portugal, já com nome europeu: Aline. Conheceu meu pai - um espanhol cristão - e logo viajou com ele para o então Novo Mundo, mais especificamente para um país que depois seria chamado de Brasil. Aqui, nessas terras novas e desafiadoras, meu pai fez o que os europeus brancos vieram fazer. Matou, explorou, roubou, embebedou-se e acabou morrendo afogado. Nesse ponto, vale uma observação ou talvez um aviso. Por favor, não se assuste com a frieza com que eu conto os fatos. Afinal, eu tenho 524 anos. A empatia com a humanidade desaparece depois de um tempo. Ou era o que eu pensava… Mas voltemos à minha história. Minha mãe aguentou alguns anos sem meu querido pai, mas não havia lugar para uma mulher solteira no século XV. Após alguns anos ela também se foi. Cortou ambos os pulsos com uma navalha, que bagunça. Eu mesma a encontrei na cozinha, toda ensanguentada. Eu tinha 15 anos. Não vou me demorar em assuntos tristes que os fariam criar certa empatia por mim, a garotinha órfã. No momento, eu não acho que a mereço. Falemos sobre coisas mais interessantes, falemos um pouco mais sobre essa minha imortalidade. Sim, eu