Não por acaso dispersos
PARA O DOMINGO: “Museu”
“Há pratos, mas falta apetite.
Há alianças, mas o amor recíproco se foi há pelo menos trezento anos.
Há um leque –onde os rubores?
Há espada– onde a ira?
E o alaúde nem ressoa na hora sombria.
Por falta de eternidade juntaram dez mil velharias (…)
A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a uva.
A bota direita derrotou a perna.
Quanto a mim, vou vivendo, acreditem.
Minha competição com o vestido continua.
E que teimosia a dele!
Como ele adoraria sobreviver!” PARA A SEGUNDA: “A alegria da escrita”
“Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?
Vou beber da água escrita que lhe copie o focinho como papel-carbono?
Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?
Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade sob meus dedos apura o ouvido.
Silêncio–também essa palavra ressoa pelo papel e afasta os ramos que a palavra bosque originou (…) as frases acossantes, perante as quais não haverá saída (…)
Outras leis, preto no branco aqui vigoram.
Um pestanejar vai durar quanto eu quiser (…)
Existe então um mundo assim sobre o qual exerço um destino independente?
Um tempo que enlaço com correntes de signos?
Uma existência perene por meu comando?
A alegria da escrita.
O poder de preservar.
A vingança da mão mortal.”
PARA A TERÇA: “A vida na hora”
“(…) Despreparada para a honra de viver, mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco , me explicando, é tanto mais humihante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Nao dá para retirar as palavras e os reflexos, inacabada a contagem das estrelas, o caráter como o casaco às pressas abotoado–