livro majestade de xingu
O bom retiro do Xingu
Berta Waldman
A pergunta que deve ter perseguido o médico sanitarista Moacyr Scliar frente ao desejo de contar a história do também sanitarista Noel Nutels é: como contar essa história? Descartada a opção pelo relato biográfico, experimentada em "Sonhos Tropicais", romance inspirado na vida de Oswaldo Cruz, sobrou-lhe o amplo território ficcional. Mas como armar o romance onde a figura de Nutels tivesse a inserção desejada?
Para evitar tanto a biografia como a vida romanceada, o escritor cria uma solução engenhosa. A história do médico é acompanhada à distância pelo narrador-personagem, a partir do encontro de ambos a bordo do mesmo navio, o Madeira, que os trouxe da Rússia. O narrador ficará preso ao fascínio de Nutels que, desde cedo, se destacava pela coragem, inteligência, espírito de liderança, imaginação e graça. Fugindo da pobreza e dos pogrons, os dois terão destinos muito diferentes, porém enlaçados indissoluvelmente no romance, pois aquele que é grande, vencedor, realizado e aventureiro só tem existência na fala da quele que é pequeno, fracassado e humilde. Mas a questão é: como fazer caber uma história de grandeza num discurso de homem imobilizado e fracassado? A surpresa é que o apagado anti-herói criado por Scliar, que nem nome tem, acaba se tornando um personagem complexo e fascinante.
O romance inicia com o narrador na UTI de um hospital, às voltas com uma cardiopatia, falando com um médico mais interessado em ler os prontuários do paciente do que em ouvir a história de sua vida e a de sua amizade com Noel Nutels. É manca a construção desse "diálogo" que perdurará até o final, já que o médico não fala. O que ele diz fica suposto na fala do narrador. A solidão e a perspectiva da morte dão veracidade à sua fala, ao mesmo tempo em que o uso da linguagem funciona como uma necessidade de simbolizar a própria experiência e, quem sabe, protelar o tempo e a sentença final, à maneira de Sheherazade.