Elias Canetti A língua do papel de parede
A língua do papel de parede
A língua cortada / estar cortado por sua língua¹
O primeiro volume da autobiografia de Elias Canetti se denomina Die Gerettete Zunge, Geschichte einer jugend (A língua absolvida, história de uma juventude). Porém um estranho fenômeno de memorização visual ou fônico quer que cometamos um erro no que diz respeito ao sintagma “língua absolvida”. Michel Schneider nos revela com prazer este desprezo:
Permita-me evocar para concluir uma característica pessoal. Abordando a autobiografia de Canetti com J.-B. Pontalis, eu lhe atribui por título A língua roubada. Meio-consciente de meu lapso, procurei e me detive em A língua perdida. Foi-me necessário ter o livro em mãos a fim de reencontrar a língua absolvida.²
Eu passei pela mesma experiência. Impossível reencontrar A língua absolvida. Vinham em minhas lembranças A língua cortada se relacionando a abertura dessa auto-biografia. Estranha passagem aqui apresentada:
Minha lembrança mais antiga está banhada de vermelho. Saio por uma porta, nos braços de uma moça, o chão diante de mim é vermelho, à esquerda uma escada igualmente vermelha. Em nossa frente, na mesma altura, uma porta se abre, deixando passar um homem que vem em meu encontro me sorrindo gentilmente. Diante de mim ele pára e me diz: “Bote para fora a língua!” Eu coloco a língua para fora, ele enfia a mão em meu bolso, tira um canivete, abre-o e aproxima a lâmina quase contra minha língua. E diz: “Agora a gente vai cortar a língua”. Não ouso colocar de volta minha língua novamente na boca, e eis que tudo se desenrola bem próximo do canivete, a lâmina não demorará a tocar a língua. No último momento, ele retira sua mão e diz: “Não, hoje não, amanhã”. Fecha o canivete e coloca-o em seu bolso.³
Ameaça de castração, ameaça diferida, perpetuamente retomada, ameaça que traz o silêncio: “a ameaça do conteúdo alcançou o seu objetivo, a criança se matou por dez anos”4 Ameaça que teve no instante o mesmo efeito