cultura na infancia
Manuel Jacinto Sarmento
(Instituto de Estudos da Criança. Universidade do Minho)
Jogos na guerra1
Uma imagem de guerra, extraída num campo de refugiados albaneses no Kosovo, mostra duas crianças brincando com uma boneca Barbie, perante o olhar entre o apreensivo, o desolado e o fatalisticamente resignado dos adultos que com elas partilham as tendas de campanha dispostas para os albergar.
Não é apenas a boneca Barbie que aparece neste contexto de incerteza e de dor insolitamente exposta, na sua arrogância loira oxigenada perante o infortúnio colectivo.
Símbolo maior da indústria cultural fornecedora do mercado infantil de jogos e brinquedos, a boneca Barbie é talvez menos inesperada no processo de globalização dos dispositivos de jogo e nos produtos de consumo lúdico das crianças do que o próprio acto de brincar das crianças, no momento em que tudo falta: a casa, a escola, um país para viver, talvez até uma família, a confiança num futuro vivível, a certeza – mesmo se precária -
da
sobrevivência.
No entanto, o que relatos e estudos das crianças da guerra nos contam é essa forma de conseguir criar um mundo outro, nas condições da mais dura adversidade, através do jogo e da ficção de uma existência onde até o horror aparece transmudado em projecção imaginária de uma realidade alternativa. Pedro Rosa Mendes conta no livro “a Baía dos
Tigres” que viu uma criança entre as ruínas da cidade do Bié, em Angola, jogando futebol,
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Este texto foi produzido no âmbito das actividades do Projecto “As Marcas dos Tempos: a
Interculturalidade nas Culturas da infância”, Projecto POCTI/CED/49186/2002 , financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
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A Conferência em que teve lugar a apresentação deste texto ocorreu nos primeiros dias da guerra do Iraque, pelo que a referência às crianças e aos jogos na guerra se assumiu numa atitude de demarcação e denúncia do belicismo associado à invasão