Angústia
Angústia
Graciliano Ramos
Julgo que ainda não me restabeleci completamente.
Das visões que me perseguiam naquelas noites compri- das umas sombras permanecem, sombras que se mis- turam à realidade e me produzem calafrios.
Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, apro- ximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com des· gosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas. exibindo tftulos e preços nos rostos, ven- dendo-se. E uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Bas- baques escutam, saem. E os autores, resignados, mos- tram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da La.ma.
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.
Impossivel trabalhar. Dão-me um oficio, um re- latório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daf em diante a cara balofa de Julião Tava- res aparece em cima do original, e os meus dedos en-
Contram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, ca pricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho,
#
mas a resma de papel fica muito reduzida.
?
A noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.
Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos reme- xem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua.
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina
Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisa, absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar.