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Uma história ainda possível
(1955 – 1956)
Friedrich Dürrenmatt
PRIMEIRA PARTE
O caixeiro-viajante de tecidos agradeceu. Estava tocado pela hospitalidade e observou que os usos e costumes das gerações passadas ainda não haviam perecido. O portão do jardim foi aberto. Traps olhou em torno de si. Caminhos de cascalho, grama, grandes porções de sombra, pontos bem ensolarados.
Estava aguardando alguns senhores aquela noite, explicou-lhe o velho quando chegaram às flores e pôs-se a aparar cuidadosamente o roseiral. Viriam amigos que moravam na vizinhança, alguns do povoado, outros de mais longe, dos lados do morro, aposentados como ele próprio, atraídos pelo clima ameno e porque ali não se sentiam os efeitos do Föhn, todos solitários, viúvos, ávidos por algo novo, fresco, vívido, de tal modo que era um prazer para ele poder convidar o senhor Traps para o jantar e a tertúlia que viria em seguida. O caixeiro-viajante deteve-se atônito. Ele na verdade quisera comer no povoado, na tão conhecida estalagem rural; só que não ousou recusar o convite. Sentiu-se comprometido. Aceitara o convite para pernoitar gratuitamente, não queria parecer um homem mal-educado da cidade. Assim tentou demonstrar contentamento. O dono da casa conduziu-o ao andar de cima.
Um quarto agradável. Lavatório com água corrente, uma cama larga, mesa, poltrona confortável, uma banqueta encostada à parede, velhos volumes com capa de couro na prateleira de livros. O caixeiro-viajante abriu sua malinha, lavou-se, barbeou-se, envolveu-se numa nuvem de água-de-colônia, foi à janela, acendeu um cigarro. O sol era um grande disco a escorregar morro abaixo, brilhando sobre as faias. Ele deu uma passada de olhos sobre os negócios feitos no dia, a pedido da Rotacher S.A., nada mau, as dificuldades com o senhor Wildholz, ele queria cinco por cento, rapaz, rapaz, ele ainda o arruinaria. E então surgiram lembranças. Coisas cotidianas, desconexas, um adultério planejado no Hotel