O belo e a carniça
“(...) junto do sublime, como meio de contraste, o grotesco é, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte. (...) de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada.”
Victor Hugo
Lembro bem da primeira vez que senti repulsa ao ler poesia. Era o poema Uma Carniça (Une Charogne), do livro As Flores do Mal (Les Fleurs du Mal) de Charles Baudelaire. Até então, eu, crua, não havia ainda tido contato com poesia moderna. À medida que lia, não conseguia evitar arrepios e um engasgo de puro asco no fundo da garganta. Não conseguia entender como alguém pode pensar em fazer poesia sobre uma carcaça pútrida encontrada por acaso. Mas o que realmente me revoltou foram os seguintes versos, em que o sarcástico autor lembra ao leitor que, apesar do nojo que está sentindo, terá o mesmo fim: “E no entanto serás igual a esta torpeza / Igual a esta hórrida infecção”. Naquele mesmo dia tive pesadelos e decidi que queria ser cremada. Após o tempo que levei para me recuperar do poema, tendo-o relido, fiquei impressionada com a intensidade de sentimentos que havia experimentado na leitura de um poema feio que narra um fato comum. E me dei conta de que nenhum poema romântico tinha me feito sentir uma reação tão forte. Desde então, mesmo sem compreender muito bem Baudelaire, passei a ter este poema como um de meus favoritos. Uma Carniça é envolvente, debochado, provocante e, sobretudo, belo a seu modo. Consegue-se amá-lo, consegue-se odiá-lo, mas não se consegue ser indiferente a ele. Ignorá-lo seria ignorar a própria idéia do horror, e não se pode fazer isso. Este poema, ao mesmo tempo em que personifica a compassividade perante fatos inevitáveis, também narra a vida que surge da morte _ ainda que consideremos essa vida asquerosa e essa morte insignificante. Ele nos transmite, através de inusitadas comparações com flor, música e pintura, a mensagem de que podemos enxergar beleza