A problemática dos lugares
Pierre Nora
A aceleração é o fenômeno que apresenta a distância entre memória verdadeira, social, intocada, aquela cujas sociedades ditas primitivas, ou arcaicas, representaram o modelo e guardaram consigo o segredo – e a história que é o que nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela mudança. Entre uma memória integrada, ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora e toda-poderosa, espontaneamente atualizadora, uma memória sem passado que reconduz eternamente a herança, conduzindo o antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos heróis, das origens e do mito – e a nossa, que só é história, vestígio e trilha. Distancia que só se aprofundou à medida em que os homens foram reconhecendo como seu um poder e mesmo um dever de mudança, sobretudo a partir dos tempos modernos. Distancia que chega hoje num tempo convulsivo.
No coração da história trabalha um criticismo destrutor de memória espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e a repelir. A história é desligitimação do passado vivido. No horizonte da sociedade de história, nos limites de um mundo completamente historicizado, haveria dessacralização ultima e definitiva. O movimento da história, a ambição histórica não são a exaltação do que verdadeiramente aconteceu, mas sua anulação. Sem dúvida um criticismo generalizado conservaria museus, medalhas e monumentos, isto é, o arsenal necessário ao seu próprio trabalho, mas esvaziando-os daquilo que, a nosso ver, os faz lugares de memória. Uma sociedade que vivesse integralmente sob o signo da história não conheceria, afinal, mais do que uma sociedade tradicional, lugares onde ancorar sua memória.
Sem dúvida é impossível não se precisar desta palavra. Aceitemos isso, mas com a consciência clara da diferença entre memória verdadeira, hoje abrigada no gesto e no habito, dos ofícios onde se transmitem os saberes