a noite é escura
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Decidi escolher este poema de um dos heterónimos de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, não por me identificar directamente com ele, mas sim por ter tido o privilégio de o ler e o ter apreciado imediatamente. A escolha por Alberto Caeiro foi propositada, devido a achar os seus poemas incrivelmente naturais e simples, levando-nos para um mundo que não parece nosso conhecido, devido à racionalização e comparação excessiva que os humanos tendem a fazer de tudo, mas que realmente é esse mesmo mundo, exterior, que nos rodeia. Caeiro tem este brilhante dom de nos fazer ver (e quando falo de ver, é ver realmente) aquilo que nós quando vemos tendemos de imediato a intelectualizar.
Quando o mestre Caeiro, refere no primeiro verso “É noite. A noite é muito escura.”, é quase como se o poeta estivesse a dizer que está triste por estar noite, pois a noite não o deixa ver a beleza da Natureza, que é tão prezada por este. Para se sentir feliz necessita de ver as cores vivas da luz. Ele procura essa mesma felicidade na luz de uma janela que se encontra a uma grande distância do centro dele. Caeiro,