A mania nacional da transgressão leve
(Michael Kepp)
Pequenos delitos são transgressões leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão institucionalizados que os transgressores nem têm idéia de que estão fazendo algo errado. Ou então acham esses "miniabusos" irresistíveis, apesar de causarem "minidanos" e/ou levarem a delitos maiores. Esses maus exemplos são também contagiosos. E, em uma sociedade na qual proliferam, ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade. Alguns pequenos delitos - fazer barulho em casa a ponto de incomodar os vizinhos ou usar as calçadas como depósito de lixo e de cocô de cachorro - diminuem a qualidade de vida em pequenas, mas significativas, doses. Eles ilustram a frase do escritor Millôr Fernandes: "Nossa liberdade começa onde podemos impedir a dos outros". No ano passado, o grupo de adolescentes que furou a enorme fila para assistir ao show gratuito de Naná Vasconcelos, na qual eu e outros esperávamos por horas, impediu nossa liberdade. Os jovens receberam os ingressos gratuitos que, embora devessem ser nossos, se esgotaram antes de chegarmos à bilheteria. A frase de Millôr também cai como uma luva para o casal que recentemente pediu a um amigo - na minha frente, na fila das bebidas, no intervalo de uma peça - que comprasse comes e bebes para ambos. O fura-fila indireto me irritou não só porque demorou mais para me atenderem mas também porque o segundo ato estava prestes a começar. Qual é a diferença deles para os motoristas que me ultrapassam pelo acostamento nas estradas e depois furam a fila, atrasando a minha viagem? E que dizer daqueles motoristas que costuram atrás das ambulâncias? Outros pequenos delitos causam danos porque representam uma pequena parte da reação em cadeia que corrói o tecido social. Os brasileiros que contribuem para a rede de consumo de drogas não são apenas os que as compram mas até os que as consomem de vez em quando em festas. Uma simples tragada