A escrita de si - michel foucault
129- 160.
A ESCRITA DE SI1
A Vita Antonii de Atanásio apresenta a notação escrita das acções e dos pensamentos como um elemento indispensável da vida ascética: “Eis uma coisa a observar para se ter a certeza de não pecar. Que cada um de nós note e escreva as acções e o s movimentos da nossa alma, como que para no-los dar [130] mutuamente a conhecer e que estejamos cer tos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso. Pois quem consente ser visto quando peca, e após ter pecado, não prefere mentir para ocultar a sua falta? Não fornicaríamos diante de testemu nhas. Do mesmo modo, escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de comu nicar mutuamente, melhor nos defenderemos dos pensamentos impuros por vergonha de os termos c onhecido. Que a escrita tome o lugar dos companheiros de a scese: de tanto enrubescermos p or escrever como por sermos vistos, abstenhamo -nos de todo o mau pensa mento. Disciplinando-nos dessa forma, pode mos reduzir o corpo à servidão e frustrar as astúcias do inimigo”2.
A escrita de si mesmo aparece aqui clara mente na sua relação de complementaridade com a anacorese: atenua os perigos da soli dão; dá o que se viu ou pensou a um olhar possível; o facto d e se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro, ao suscitar o respeito humano e a vergonha; podemos pois propor uma primeira analogia: aquilo que os outros são para o asceta numa [131] comunidade, sê -lo-á o caderno de notas pa ra o solitário. Mas, simultaneamente, uma segunda analogia se coloca, referente à prá tica da ascese c omo trabalho não apenas sobre os a ctos mas, mais precisamente, sobre o pensamento: o constrangimento que a pre sença alheia exerce sobre a ordem da con duta, exercê-lo- á a escrita na ordem dos mo vimentos internos da alma; neste sentido, ela tem um papel muito