Quando eu morrer
Castro Alves Eu morro, eu morro. A matutina brisa Já não me arrasa um riso. A fresca tarde Já não me doura as decoradas faces Que gélidas se escovam. (Junqueira Freire)
Quando eu morrer ... não lancem meu cadáver No fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto.
Como o viajante desse hotel funéreo.
Corre nas veias negras desse mármore
Não sei que sangue vil de messalina, A cova, num bocejo indiferente, Abre ao primeiro a boca libertina.
Ei-la a nau do sepulcro _ o cemitério...
Que povo estranho no porão profundo! Emigrantes sombrios que se embarcam
Para as plagas sem fim do outro mundo.
Tem os fogos _ errantes _ por santelmo.
Tem por velame _ os panos do saudário...
Por mastro _ o vulto esguio do cipreste,
Por gaivotas _ o mocho funerário...
Ali ninguém se firma a um braço amigo
Do inverno pelas lúgubres noitadas... No tombadilho indiferentes chocam-se E nas trevas esbarram-se as ossadas...
Como deve constar ao pobre morto
Ver as plagas da vida além perdidas,
Sem ver o branco fumo de seus lares
Levantar-se por entre as avenidas!...
Oh! Perguntai aos frios esqueletos
Por que não têm coração ao peito...
E um deles vos dirá: “Deixei-o há pouco
De minha amante no lascivo leito”.
Outro: “Dei-o a meu pai”. Outro: “Esqueci-o
Nas inocentes mãos de meu filhinho”...
... Meus amigos! Notai... bem como um pássaro
O coração do morto volta ao ninho!...
São Paulo, março de 1869 Do livro “Espumas Flutuantes”, Castro Alves, 1870 (Obra de domínio público)