Pastelao
( Fabrício Carpinejar )
Eu falei que meu colesterol está alto, muito alto? 270! Agora terei que esperar três meses para um novo exame e finalmente escapar da vigilância secreta de minha mulher. Por enquanto, sofro por antecipação. Aprendi que “prevenção” é somente antecipar o sofrimento. Sofre-se mais. Sofre-se antes de ter feito qualquer coisa. Vem funcionando. Fui beliscar uma torta de pera e já vejo as sobrancelhas arqueadas de Cínthya reprimindo a crosta de massa podre; e ela nem estava comigo naquele momento. Repare que disse “beliscar”. Descobrimos quem entrou em regime pelos eufemismos. Fui quebrar o protocolo de Kyoto na Lancheria Café da Manhã, cansado de me negar delícias. Repeti minha infância: um pote de liquidificador cheio de suco de morango e pastel de carne tamanho folha almaço. Fazia tanto tempo que não comia um pastel que exagerei na pressa e mordi sem ao menos testar a temperatura do recheio — era a ânsia do apaixonado que não coordena os movimentos simultâneos da língua, dos dentes e dos lábios. O vapor queimou minha bochecha direita. Um tufão quente clareou os pelos da barba. Ganhei um letreiro de idiota no rosto, um vergão ridículo. Ainda fui para São Paulo de tarde, o que agravou o mistério do corte. Parecia marca de batom, não foram poucas as pessoas que buscaram limpar e me proteger de crise conjugal. Ao descer de volta a Porto Alegre, no aeroporto Salgado Filho, Cínthya não esperou que colocasse a mala no bagageiro: — O que é isso? — O quê? Eu me fiz de mal-entendido porque lembrei que não poderia contar a verdade para ela. Para ela não. Para os outros, não havia problema, mas para ela, médica, que me cuida e que me ama, enfurecida com meu colesterol, não tinha jeito. — Como não sabe? Parece uma mordaça… — Hein? — Um arranhão de mulher? — Não, tá brincando, né? Com objetivo de proteger uma pequena mentira o homem afunda numa tragédia. Não existe pequena mentira, toda mentira é uma omissão