Nero

3127 palavras 13 páginas
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso...
Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males... Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra. Não que fizesse grande finca-pé naquela amizade. Longe disso. A menina dos seus olhos era a morgada, a filha, que o acariciara como a uma criança. A velha toda a vida o pusera a distância. Dava-lhe o naco de broa (honra lhe seja), mas borrava a pintura logo a seguir: — Ala! E ele retirava-se cerimoniosamente para o ninho. Só a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos anos fora, o consentira ao lume, enroscado a seus pés, enquanto a neve, branca e fria, ia cobrindo o telhado. O velho também o apaparicava de tempos a tempos. Se a vida lhe corria e chegava dos bens de testa desenrugada, punha-lhe a manápula na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patrão novo. Porque o seu verdadeiro senhor era o filho, um doutor, que morava muito longe. Só aparecia na terra nas férias de Natal. Mas nessa altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros apenas o tratavam, o sustentavam, para que o menino

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