Natal na Barca
As personagens, cúmplices na solidão, carregam os seus destinos e, apesar da situação inusitada para a data, mostram-se imbuídas do espírito natalino: o velho, na sua inconsciência ébria, dirigia palavras amenas a um vizinho invisível (p.103). A narradora, mesmo se sentindo bem naquela solidão, ao ver iniciado o diálogo com a mulher desconhecida, cede ao “sistema de vasos comunicantes” (p.105) e chega a confessar: Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los (p.105). A mulher, ninando constantemente o filho que trazia ao colo, ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante (p.106). A narradora chega a se questionar: seria apatia? Inconsciência? Depois ouve a sua declaração de fé incondicional em Deus e decifra o segredo da sua segurança e tranqüilidade.
O discurso não refere nenhum intuito de comemoração, mas, como se observa, as personagens se tornam humanas, como se de dentro delas emergissem sentimentos benéficos e gratuitos: as palavras do bêbado são amenas, a frieza inicial da narradora se enleia em teias de amizade e compaixão e a mulher, apesar das mazelas de seu destino, mantém os