Mandela
O que vemos hoje naquela imagem não é o mesmo que víamos há 23 anos. Em 1990, víamos uma bela e comovente história de amor, de superação e de liberdade. Hoje vemos, caminhando em direcção ao futuro, de mãos dadas, o ANC nas suas duas versões antagónicas. De um lado a aposta no diálogo e no perdão, a abertura ao outro, a inteligência, a paciência, o espírito democrático, o desprendimento em relação ao poder, a humildade, a elegância, o amor ao próximo. Do outro, o rancor, o ódio em carne viva, a arrogância, a sede de poder, a corrupção, o populismo fácil, a estupidez e a crueldade.
Importa avaliar, no momento em que Mandela partiu, a força e a consistência do seu legado no ANC, no conjunto da sociedade sul-africana, e em África de uma forma geral.
Nelson Mandela é um produto da complexa sociedade sul-africana. Mandela nasceu e cresceu no seio da aristocracia rural xhosa, educada e bastante sofisticada, sobretudo em comparação com os rudes camponeses semianalfabetos, prisioneiros de uma ideologia religiosa arcaica e ultraconservadora, que no final dos anos 40 se apossaram do poder na África do Sul, começando então a desenhar e a erguer o sistema do apartheid.
Lembro-me de ter conhecido nos anos 80 um diplomata sul-africano, bóer, que me explicou de forma resumida aquele que era, no seu entendimento, o dilema sul-africano: “Os meus avós não sabiam ler nem escrever. Andavam descalços. Tomámos o poder e criámos o apartheid para poder calçar todos os bóeres. Hoje temos sapatos e não queremos voltar a andar descalços.”
O afrikaans, a língua dos bóeres, um crioulo de base holandesa, que incorporou muitas palavras de origem banto, malaia e khoi san, nasceu nos quintais e nas