Livro
Cantiga de amor sem eira nem beira, vira o mundo de cabeça para baixo, suspende a saia das mulheres, tira os óculos dos homens, o amor, seja como for, é o amor.
Meu bem, não chores, hoje tem filme de Carlito.
O amor bate na porta o amor bate na aorta, fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico, o amor ronca na horta entre pés de laranjeira entre uvas meio verdes e desejos já maduros.
Entre uvas meio verdes, meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam a boca murcha dos velhos e quando os dentes não mordem e quando os braços não prendem o amor faz uma cócega o amor desenha uma curva propõe uma geometria.
Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro o amor subiu na árvore em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca às vezes sara amanhã.
Daqui estou vendo o amor irritado, desapontado, mas também vejo outras coisas: vejo beijos que se beijam ouço mãos que se conversam e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas que não ouso compreender...
Carlos Drummond de Andrade
Namorar é além do beijo e da sintaxe, não depende de estado ou condição.
Ser duplicado, ser complexo, que em si mesmo se mira e se desdobra, o namorado, a namorada não são aquelas mesmas criaturas que cruzamos na rua.
São outras, são estrelas remotíssimas, fora de qualquer sistema ou situação.
A limitação terrestre, que os persegue, tenta cobrar (inveja) o terrível imposto de passagem:
"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!
Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada na sola dos sapatos..."
Ou senão:
"Desiste! Foge! Esquece!"
E os fracos esquecem. Os tímidos desistem.
Fogem os covardes.
Que importa? A cada hora nascem outros namorados para a novidade da antiga experiência.
E inauguram cada manhã
(namoramor)
o velho, velho mundo renovado.
Carlos Drummond de Andrade