John Locke
Já faz bastante tempo que eu me dei conta de que, a partir de minha infância, considerara verdadeiras muitas opiniões equivocadas, e de que aquilo que, mais tarde, estabeleci em princípios tão mal fundamentados só podia ser deveras suspeito e impreciso; de maneira que era preciso que eu tentasse com seriedade, uma vez em minha vida, livrar-me de todas as opiniões nas quais até aquele momento acreditara, e começar tudo novamente a partir dos fundamentos, se pretendesse estabelecer algo sólido e duradouro nas ciências. Porem, parecendo-me esse empreendimento desmedido, esperei chegar a uma idade que fosse tão madura que não houvesse necessidade de aguardar outra depois dela, na qual eu estivesse mais habilitado para executa-lo; o que me fez adiá-lo por tanto tempo que, de agora em diante, julgaria cometer um equívoco se ainda utilizasse em decidir o tempo que me sobra para agir.
[ ...] Até o momento presente, tudo o que considerei mais verdadeiro e certo, aprendi-o dos sentidos ou por intermédio dos sentidos; mas às vezes me dei conta de que esses sentidos eram falazes, e a cautela manda jamais confiar totalmente em quem já nos enganou uma vez.
Porém, se bem que os sentidos às vezes nos enganem, no que diz respeito às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode sensatamente duvidar, apesar de as conhecermos por meio deles: por exemplo, que eu me encontre aqui, sentado perto do fogo, trajando um robe, tendo este papel nas mãos e outras coisas deste tipo. E como eu poderia negar que estas mãos e este corpo sejam meus? Exceto, talvez, que eu me compare a esses dementes, cujo cérebro está de tal maneira perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que amiúde garantem que são reis, enquanto são bastante pobres; que estão trajados de ouro e púrpura, enquanto estão totalmente nus; ou imaginam ser vasos ou possuir um corpo de vidro. São dementes e eu não