fiel
Não que o resto do corpo estivesse protegido. Não estava. Mas patinar na lama retida nos tênis realmente lhe incomoda. Os óculos embaçados, a roupa colada ao corpo, os livros da biblioteca danificando na água que encontra nos rasgos da mochila rota possível abrigo clandestino não lhe chamam a atenção. Dessa vez ele meteu os fones nos ouvidos e carregou, num e noutro ombro, a batida louca dos stones. A mesma música a repetir. Ele calcula que nos quarenta minutos de caminhada a ouvirá pelo menos seis vezes. Jagger escala seu pescoço pela aorta do fone e se chega ao ouvido. Parece se divertir naquele desarranjo. O ônibus de sempre corta a nuvem cinza que secou o ponto – feirense não pinga em rua nos dias de chuva – e o motorista de sempre olha desconfiado pra ele, que sempre dá bom dia quando embarca. Sádico, deve ter pensado. Sádico porra nenhuma, que o sacana nem deve saber o que é isso. Deve ter pensado que é foda estar liso logo numa trovoada dessa e lamentou não poder dar carona, porque o ônibus agora tem câmera e a miséra do estagiário que ganha quase igual a ele pra trabalhar bem menos, sem precisar carregar umas porra que nem dão bom dia, tá fazendo relatório toda semana pra entregar ao patrão quem dá carona aos bróder na hora do aperto. Ele ri da imagem com a certeza de que o motorista riu da cara dele Vá dar bom dia a uma pica dura, veado. Sádico, foi isso. Não fosse assim, por que diabos ele aceitaria aquilo tudo? O mesmo bar, as mesmas roupas, os mesmos livros molhados de existencialismo, a mesma mulher, o mesmo curso, a mesma música... E percebe que o incômodo escorregar dos pés nas meias sujas comporta em si as duas metáforas que melhor compassam sua vida. Keith, dos ombros,