De Cortiço a Cortiço
Antonio Cândido
Hoje está na moda dizer que uma obra literária é constituída mais a partir de outras obras, que a precederam, do que em função de estímulos diretos da realidade — pessoal, social ou física. Deve haver boa dose de verdade nisso. Todas as vezes, dizia Proust, que um grande artista nasce, é como se o mundo fosse criado de novo, porque nós começamos a enxergá-lo conforme ele o mostra. E há o dito de Oscar Wilde, que depois de ter mostrado Corots e
Daubignys, a natureza da França mostrava naquela altura Monets e Pissarros.
Lembro estes dois autores porque sucedem ao Naturalismo e reagem contra ele. E para o Naturalismo a obra era essencialmente uma transposição direta da realidade, como se o escritor conseguisse ficar diante dela na situação de puro sujeito em face do objeto puro, registrando (teoricamente sem interferência de outro texto) as noções e impressões que iriam constituir o seu próprio texto. A estética fin-de-siècle de Rémy de Gormont, teoricamente tão pouco naturalista, repousa nessa utopia da originalidade absoluta pela experiência imediata, que o levava a desconfiar da influência mediadora das obras.
Mas nós sabemos que, embora filha do mundo, a obra é um mundo, e que convém antes de tudo pesquisar nela mesma as razões que a sustêm como tal. A sua razão é a disposição dos núcleos de significado, formando uma combinação sui generis, que se for determinada pela análise pode ser traduzida num enunciado exemplar. Este procura indicar a fórmula segundo a qual a realidade do mundo ou do espírito foi reordenada, transformada, desfigurada ou até posta de lado, para dar nascimento ao outro mundo.
Ver criticamente a obra é escolher um dos momentos deste processo como plataforma de observação. Num extremo é possível encará-la como duplicação da realidade, de maneira que o trabalho plasmador fique reduzido a um registro sem grandeza, pois se era para fazer igual, por que não deixar a realidade em paz?
É