consumo e sacrifício
Consumo e sacrifício Quem vive numa sociedade capitalista desenvolvida e laica (às vezes nem tão desenvolvida nem tão laica) costuma ficar horrorizado com os relatos sobre os sacrifícios de povos distantes e exóticos, ou desaparecidos, como os astecas e os maias, embora o culto ao consumo, que lhe alimenta o espírito, e boa parte da ciência, que lhe garante a sobrevivência, também dependam de sacrifícios, muitas vezes os mais sangrentos e cruéis. A diferença é que a morte e o sangue já não integram um teatro mítico e social, já não têm sentido ou função religiosos, ocorrem nos bastidores, foram recalcados para bem longe do espetáculo asséptico da publicidade dos bens de consumo, dos cosméticos e dos medicamentos. Quem vai a uma churrascaria não pensa duas vezes no boi vivo (nem se ajoelha diante dele em agradecimento); quem desfruta do progresso tecnológico e farmacêutico não venera, nos chamados templos da moda, as cobaias de laboratório. Num belo ensaio escrito há mais de um século (1899) e agora publicado no Brasil pela Cosacnaify, os sociólogos franceses Marcel Mauss e Henri Hubert explicam a função social do sacrifício. Servindo-se sobretudo de exemplos judaicos e hindus, "Sobre o Sacrifício" mostra como o que está em jogo nesses rituais é sempre um movimento e uma comunicação entre o sagrado e o profano, de modo a perpetuar o ciclo da vida pela morte, pela destruição ou pela abnegação. O ritual do sacrifício representa a ressurreição: "É nele que está o princípio de toda vida. (...) Da morte ele tira a vida", escrevem Mauss e Hubert. O sacrifício é um ritual de intermediação entre o sagrado e o profano. O profano não pode se comunicar diretamente com o sagrado sob o risco de ser aniquilado. Precisa de um intermediário, que é a vítima. A imolação da vítima põe o sagrado e o profano em comunicação indireta, sem deixar que o profano seja destruído pela força do sagrado.