"Cidade de Deus" "Cidade de Deus" é um filme-marco não apenas pela discussão que suscita em torno de seus temas (favela, violência, juventude, drogas), mas por colocar em debate -e de certo modo em crise- o próprio cinema brasileiro. Muitas das críticas que a fita de Fernando Meirelles e Katia Lund vem recebendo são legítimas. Do ponto de vista político, por exemplo, pode-se questionar a apresentação da favela como um espaço de violência fechado em si mesmo, como se a droga fosse produzida e consumida toda lá dentro e o resto da sociedade não tivesse nada a ver com o tráfico. Invertendo o dito popular, o filme parece dizer: "Eles são pretos, eles que se desentendam". Nesse sentido, o contraponto natural seria "O Invasor", de Beto Brant, cuja conclusão é: "Estamos todos no mesmo barco". Do ponto de vista sociológico, pode-se condenar -como a antropóloga Alba Zaluar- a proporção falsa entre negros e brancos na favela. Do ponto de vista moral, a exposição de crianças a situações de extrema brutalidade. Pode-se ainda criticar a adoção de fórmulas narrativas do filme de ação americano, destinadas a garantir a identificação do espectador com os bandidos "do bem", contra os "do mal". O que não se pode, porém, é dizer que se trata de um filme ruim, e muito menos rejeitá-lo em bloco sob o argumento de que estetiza a miséria, configurando uma "cosmética da fome". Esse rótulo foi um achado da pesquisadora Ivana Bentes para caracterizar uma leva de filmes edulcorados e publicitários que passeiam como turistas pelas mazelas sociais do país. Mas hoje a expressão tende mais a esconder do que a revelar os traços da produção cinematográfica recente. "Cidade de Deus", a despeito de sua composição, digamos, "estilosa", tem pouco a ver com essa estética (ou cosmética). Visto sem antolhos, é um filme de vigor espantoso e de extrema competência narrativa. Seus grandes trunfos são o roteiro engenhosamente construído (sim, à maneira americana, sem gorduras nem pontos