Banquete de gente
BANQUETE DE GENTE: COMENSALIDADE E CANIBALISMO NA AMAZÔNIA*
Carlos Fausto
Nosso corpo não é outra coisa que um edifício de almas múltiplas. L’effet, c’est moi (F. Nietzsche, Além do Bem e do Mal).
Este texto é um ensaio no sentido estrito do termo: uma prosa que versa sobre um tema específico, sem esgotá-lo, reunindo idéias e dados de outros autores, de forma a ressaltar certas articulações ainda pouco exploradas. De maneira geral, ele trata da caça e da guerra na Amazônia e, em particular, focaliza a relação entre comensalidade e predação. Meu intuito é aproximar os estudos sobre predação guerreira daqueles sobre a fabricação do parentesco, tratando a predação e a comensalidade como formas distintas, mas dinamicamente articuladas, de produção de pessoas e da socialidade na Amazônia. O ensaio é também uma tentativa de complementar idéias que restaram inexploradas em meu livro sobre os Parakanã, no qual procurei desenvolver um modelo da guerra e do xamanismo indígenas que articulasse a predação no exterior à produção no interior. Esse modelo focaliza sobretudo a produção ritual do interior — o rito enquanto momento da predação familiarizante —, deixando em segundo plano a produção cotidiana do interior, objeto privilegiado dos estudos da escola americanista britânica1. Detive-me, sobretudo, no momento dinâmico em que exterioridade e interioridade se definem como pólos de um mesmo movimento. Não enfrentei, porém, a questão de como pessoas apropriadas no exterior são efetivamente produzidas enquanto parentes. Em particular, não articulei, para usar o vocabulário marxiano, o consumo produtivo à produção consumptiva. No epílogo do livro, limitei-me a distinguir as atividades guerreiras e cinegéticas como duas formas de consumo: a primeira visando à produção ontológica de pessoas; a segunda, ao crescimento vegetativo do indivíduo (Fausto 2001:538). A distinção entre canibalismo e alimentação aparecia, assim, como equivalente àquela entre um