As duas maes de mila autora clara vidal
mila não é única. A história de Mila não é incomum como desejaríamos que fosse. Por outro lado, com certeza existem muitas mães melhores que a dela, mais suaves, amorosas e dedicadas. Com diferentes intensidades, a distância e a omissão do pai de Mila também não são raridade nas narrativas escutadas no cotidiano dos consultórios de psicanálise ou de psicoterapia. Para além das famílias mais “saudáveis”, se abre todo um espectro de relações entre pais e filhos que se estende de vínculos simbióticos, quase incestuosos, a situações em que prevalece o desprezo e, às vezes, a maldade.
É sedutor pensar que a maldade depende de um gene extraviado ou que a crueldade nasce de um desarranjo bioquímico em um grupo de células cerebrais.
É confortável nomear sob diagnósticos precisos a anorexia, a depressão e as obsessões. Além da ilusão de conhecimento e de domínio, a nomeação nos autoriza a prescrever drogas discutíveis e de valor efêmero que amortecem a busca pelas causas da melancolia, da tristeza e do mal-estar próprios da natureza humana.
A medicação irresponsável de crianças, novidade incentivada pela indústria farmacêutica, alimentada sem critérios cuidadosos pelos meios de comunicação, se vale da complacência da sociedade, que assim se livra de suas responsabilidades. Mila seria hoje rotulada por alguns como portadora, entre outros males, de um transtorno obsessivo-compulsivo, candidata ao uso da droga do momento. Entretanto, durante a leitura do livro, acompanhamos, impotentes, a lógica impiedosa da montagem que resultou em seus sintomas. Em certo sentido, Mila teve sorte. Ao final, abriu-se para ela a possibilidade de falar, de desmontar e de se libertar não dos seus genes, mas dos seus fantasmas, do seu romance familiar.
A crueldade, também própria do homem, nos espreita.
Quase sempre de longe, nas palavras e ilustrações dos livros de história, nas narrativas de tragédias em terras e tempos remotos. Dizemos, conformados, que