Chatô: O Rei do Brasil
Fernando Morais
(c) 1994
Para Marina
André Malraux alimentava a ilusão de escrever a biografia do Chiquinho Matarazzo, mas eu consegui demovê-lo dessa rematada besteira. Acho que, como vingança, tentou escrever um livro sobre a minha vida, mas acabou desistindo. Depois foi a vez do padre Dutra, que cercava parentes meus pelas esquinas, em busca de informações para compor um romance sobre a minha vida. Quem também andou bisbilhotando as minhas misérias, com planos de imortalizar-me em papel, foi a princesa Bibescu, da Romênia, editora e escritora. Os três fracassaram, mas a todos eu havia feito uma modesta exigência: a obra teria que começar descrevendo a cena em que eu e minha filha
Teresa aparecíamos nus, sentados na foz do rio Coruripe, comendo bispos portugueses, tal como fizeram meus ancestrais caetés, quatro séculos atrás. O deslumbrante piquenique, que já povoou alguns delirios meus, seria a forma ideal de divulgar a origem do meu sangue amerindio na Europa.
Assis Chateaubriand
Capítulo 1
Inteiramente nus e com os corpos cuidadosamente pintados de vermelho e azul, Assis Chateaubriand e sua filha
Teresa estavam sentados no chão, mastigando pedaços de carne humana. Um enorme cocar de penas azuis de arara cobria os cabelos grisalhos dele e caía sobre suas costas, como uma trança. O excesso de gordura em volta dos mamilos e a barriga flácida, escondendo o sexo, davam ao jornalista, a distância, a aparência de uma velha índia gorda. Pai e filha comiam com voracidade os restos do bispo Pero Fernandes Sardinha, cujo barco adernara ali perto, na foz do rio Coruripe, quando o religioso se preparava para retornar à pátria portuguesa. Quem apurasse o ouvido poderia jurar que ouvia, vindos não se sabe de onde, acordes do Parsifal, de Wagner. No chão, em meio aos despojos de outros náufragos, Chateaubriand viu um exemplar do Diário da Noite, em cujo cabeçalho era possível ler a data do festim canibal:15 de junho de