Anencefalia
De Marilena Chauí Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 8 O mundo da prática
Capítulo 6 A liberdade
A liberdade como problema
A torneira seca (mas pior: a falta de sede) A luz apagada (mas pior: o gosto do escuro) A porta fechada (mas pior: a chave por dentro).
Este poema de José Paulo Paes nos fala, de forma extremamente concentrada e precisa, do núcleo da liberdade e de sua ausência. O poeta lança um contraponto entre uma situação externa experimentada como um dado ou como um fato (a torneira seca, a luz apagada, a porta fechada) e a inércia resignada no interior do sujeito (a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por dentro). O contraponto é feito pela expressão “mas pior”. Que significa ela? Que diante da adversidade, renunciamos a enfrentá-la, fazemo-nos cúmplices dela e é isso o pior. Pior é a renúncia à liberdade. Secura, escuridão e prisão deixam de estar fora de nós, para se tornarem nós mesmos, com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e nossa falta de vontade de girar a chave.
Um outro poema também oferece o contraponto entre nós e o mundo:
Mundo mundo vasto mundo, Se eu me chamasse Raimundo Seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, Mais vasto é meu coração.
Neste poema, Carlos Drummond de Andrade, como José Paulo Paes, confronta-nos com a realidade exterior: o “vasto mundo” do qual somos uma pequena parcela e no qual estamos mergulhados. Todavia, os dois poemas diferem, pois em vez da inércia resignada, estamos agora diante da afirmação de que nosso ser é mais vasto do que o mundo: pelo nosso coração – sentimentos e imaginação – somos maiores do que o mundo, criamos outros mundos possíveis, inventamos outra realidade. Abrimos a torneira, acendemos a luz e giramos a chave.
Embora diferentes, os dois poemas apontam para o grande tema da ética, desde que esta se tornou questão filosófica: O que está e o que não está em nosso poder? Até onde de