O perdão pode curar
Paul Ricoeur
Tradutor: José Rosa
O perdão pode curar?∗
Paul Ricoeur
Falar de cura é falar de doença. Ora, poderá falar de doença alguém que não seja médico, nem psiquiatra, nem psicanalista? Creio piamente que sim. As noções de trauma ou de traumatismo, de ferida e de vulnerabilidade pertencem à consciência comum e ao discurso ordinário. É exactamente a este fundo tenebroso que o perdão propõe a cura. Mas de que maneira? Gostaria de situar o perdão na enérgica acção de um trabalho que tem início na região da memória e que continua na região do esquecimento. É pois das “doenças” da memória que gostaria de partir. O que me incitou a colocar o ponto de partida no coração da memória é um fenómeno inquietante, que se pode observar à escala da consciência comum, da memória partilhada (se se quiser evitar a noção bastante discutível de “memória colectiva”). Este fenómeno é particularmente característico do período pós-guerra fria, em que tantos povos foram submetidos à difícil prova de integração de recordações traumáticas, vindas do passado anterior à época totalitária. Não se poderá dizer que certos povos sofrem de “demasiada” memória, como se estivessem envergonhados pela lembrança das
Publicado em Esprit, no 210 (1995), pp. 77-82. Texto de uma conferência proferida no Templo da Estrela, na série “Dieu est-il crédible?”. O título foi-lhe atribuído pelos organizadores. Foi pela primeira vez publicado em português na revista Viragem, no 21 (1996), pp. 26-29, e republicado in Fernanda HENRIQUES (org.), Paul Ricoeur e a Simbólica do Mal, Porto, Edições Afrontamento, 2005, pp. 35-40.
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Paul Ricoeur
humilhações sofridas num passado remoto e também pela das glórias longínquas? E, ao invés, não se poderá dizer que outros povos sofrem de falta de memória, como se fugissem perante a obsessão do seu próprio passado? Não é esse mesmo, muitas vezes, o nosso caso, dos franceses, confrontados com a